O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

terça-feira, 17 de maio de 2016

NOVA TESE SOBRE O DEUS THOR




NOVA TESE SOBRE O DEUS THOR



              Prof. Dr. Johnni Langer |(PPGCR-UFPB/NEVE)



Thor é a deidade mais popular da Escandinávia pré-cristã, recebendo desde o século XIX as mais variadas análises e estudos, além de seu grande sucesso na arte e na cultura popular do Ocidente até nossos dias. Uma tese de doutorado vem agora implementar um novo fôlego aos que se dedicam ao estudo dos mitos envolvendo esse importante deus nórdico:  Understanding diversity in Old Norse religion taking Þórr as a case study, disponível aqui, defendida na Universidade de Aberdeen (Escócia) em 2015 por Declan Ciaran Taggart, sob orientação de Stefan Brink e Tarrin Wils.

A pesquisa possui uma farta documentação de fontes primárias e bibliografia analítica, concentrando seu foco na literatura medieval produzida sobre Thor, com o intuito de estudar as mudanças e estabilidades nas representações mitológicas. A metodologia adotada é a da Ciência Cognitiva da Religião, especialmente a Psicologia e estudos de memória, com o fim de se conhecer os fatores da transmissão oral ao conservar e adaptar contextos narrativos. O tema central da tese é a análise dos fenômenos do trovão e relâmpago associados com a divindade e neste sentido, a tese se aproxima de muitas pesquisas que vem resgatando o referencial naturalista na mitologia nórdica (Perkins, 2001). Claro que não se trata mais do naturalismo defendido pelos românticos oitocentistas, que procuravam explicar todos os relatos míticos pela simples observação da natureza. Aqui a relação com o ambiente natural é vista como dependente da interação social, cultural e histórica e não simplesmente como o seu produto. A própria figura de Thor torna-se um conceito sobrenatural flexível e não mais um mito dogmaticamente fechado em torno de conceitos prontos, tão populares nos manuais mais célebres do romantismo.

O autor dialoga essencialmente com diversos mitólogos do século XX (a exemplo de Jan de Vries, Turville-Petre, Hilda Davidson, 1964; Blinkengerg, 1911) e com produções mais recentes (como Bertell, 2003; Perkins, 2001; Motz, 1997; Lindow, 1994). Um dos primeiros pontos interessantes da tese é a opção pela continuidade do conceito-termo religião para o mundo pré-cristão, questionado por alguns acadêmicos (que entre 2006 e 2010 adotaram a expressão “costume antigo”, forn siðr). A partir da crítica ao emprego conceitual desta expressão contida nas fontes primárias (Lindberg, 2009, p. 114), a maioria dos trabalhos mais recentes vem empregando massivamente o termo Religião Nórdica Antiga. Aqui o autor também emprega o termo “nórdico antigo” para perspectivas culturais, religiosas e literárias do mundo escandinavo pré-cristão, enquanto que “islandês antigo” é empregado mais para questões linguísticas. Essa tendência também vem sendo adotada por escandinavistas ibéricos (Antón, 2014). Declan Taggart também concede continuidade aos polêmicos termos viking e Era Viking, mas em situações especificamente didáticas (Taggart, 2015, p. 7-11).


Seu referencial de mitologia é como uma coleção de textos de determinada época, enquanto que o mito recebe uma categorização de narrativa sagrada, uma opção bem tradicional. A crítica das fontes primárias foi influenciada diretamente por Margaret Clunies Ross e John McKinnell com seus referenciais estruturalistas e no tocante à conservação dos materiais, enquanto que a crítica interna é obtida de Joseph Harris e John Lindow. O debate sobre a autenticidade das fontes literárias foi influenciado por Anthony Faulkes e Preben Sørensen. O uso da runologia e fontes iconográficas recebeu colaboração de Neil Price e Henrik Willians. Muito atento às questões das mudanças e da diversidade das crenças pré-cristãs, o autor também utilizou as diversas contribuições de Terry Gunnell, Jens Peter Schødjt e Anders Andrén. E ainda, dentro de seu referencial metodológico sobre cognição e memória, empregou as idéias sobre mitologia de Pascal Boyer e Justin Barrett (Taggart, 2015, p. 12-68).

A partir da página 69 inicia a pesquisa temática propriamente dita da tese, primeiramente discutindo as afinidades etimológicas entre armamento e movimento do relâmpago, entre carroça e o deus Thor, entre clima e carroça, trovão e Thor, entre outros. Os estudos toponímicos ajudam também a entender a relação entre o deus celeste e suas afinidades agrárias. Um momento marcante da tese é a análise das conexões de Thor com o trovão e o relâmpago na literatura medieval, além da relação da deidade com os terremotos. A investigação do autor sobre o poema norueguês Haustlöng e a poesia islandesa de Steinunn Refsdóttir é muito boa, apesar de não ser completa e exaustiva, como veremos mais adiante. As menções ao vulcanismo são bem atuais, indo de encontro a recentes pesquisas sobre fenômenos climáticos e registros arqueológicos e sua influência nos mitos e na literatura nórdica antiga (Taggart, 2015, p. 69-112).          

O primeiro momento polêmico do autor é quando rompe com a tradicional visão de Thor enquanto ferreiro cósmico ou divino, especialmente na poesia escáldica, apesar de concordar que o martelo possui conexões simbólicas com a ferraria e ser emblema de vários ferreiros. Aqui o autor critica especialmente Davidson (1965) e Motz (1997), mas concorda com Lindow (1994), quando menciona que o martelo nunca foi usado como força criativa (Taggart, 2015, p. 129-137). Porém, a questão ainda está muito longe de ser esgotada, como atestam vários estudos mais recentes sobre a figura do ferreiro mítico (a exemplo de Wood, 2015, não citado pelo autor). A relação entre martelo, ferraria, mitos e ritos de Thor ainda demandará muitas problemáticas, especialmente quando confrontada com a cultura material nórdica e com perspectivas comparativas da área européia antiga.

Discutindo a relação entre Thor e os objetos mítico-mágicos, Taggart chega a outro ponto polêmico. Questiona a interpretação clássica de Hilda Davidson de que poderiam ter existido ritos a Thor envolvendo o simbolismo do relâmpago, fogo e pilares com pregos, devido ao seu emprego de fontes tardias (especialmente Johannes Schefferus, ver: Davidson, 2004, p. 63-74). Mesmo assim, termina sua longa nota afirmando que a questão é intrigante e motivo para pesquisas futuras (Taggart, 2015, p. 147, nota 507).

A comparação com material folclórico ou posterior à Era Viking volta a ser questionada em outro ponto, referente as denominadas thunderstones (popularmente conhecidas no Brasil por “pedras de raio”). Para o autor, não existem evidências de que no mundo pré-cristão nórdico existiram crenças relacionando os relâmpagos/trovões com a criação de pedras (de origem antrópica, como objetos neolíticos; ou naturais, como fósseis, mas ambos creditados à uma origem celeste), como queriam os pesquisadores Jacob Grimm, Turville-Petre, Jacqueline Simpson e Lotte Motz. Essa associação teria sido criada na Grécia clássica, percorrido o mundo medieval e tornada popular a partir do Renascimento, com a sua primeira citação literária no mundo nórdico, na obra de Olaus Magnus. Posteriormente, tais narrativas transformam-se em crença popular e se disseminam no folclore escandinavo contemporâneo, resgatado por Blinkenberg em 1911 (Taggart, 2015, p. 177-188). Essa postura é complicada por vários motivos. Em primeiro, algumas das fontes largamente citadas pelo autor, como Snorri e o Haustlöng mencionam uma etiologia que se relacionada com o tema na Escandinávia medieval: logo após Thor provocar trovões e relâmpagos, ocorre o choque celeste entre a amoladeira de Hrungnir e o martelo de Thor, originando todas as amoladeiras do mundo (Skáldskaparmál 17, Sturluson, 1998, p. 21-22). O tema da amoladeira (ou pedra de afiar em português; whetstone em inglês; hein em nórdico antigo) foi totalmente omitido por Taggart. Ele não cita dois trabalhos fundamentais: o primeiro (Simpson, 1979), que tratou das conexões do tema entre a literatura anglo-saxã e os ritos nórdicos; Mitchell (1985), que retoma a questão analisando primeiramente as amoladeiras dentro de um contexto ritual e politico no mundo saxônico e nórdico, antes relacionadas a Tyr e depois a Thor. Outro trabalho importante (Mees, 2015), já havia sido disponível parcialmente em paper de evento, bem antes da publicação da tese de Taggart, enfocando amoladeiras da Era Viking com inscrições rúnicas (estas mencionando encantamentos de batalha).

Quanto ao material arqueológico, também é omitido de maiores detalhes. Ele não analisa objetos vinculados às pedras de raios e amoladeiras no mundo nórdico, como os fósseis marinhos, a exemplo dos exemplares de broches de bronze de museus da Suécia e Suécia (confeccionados com fósseis ao centro), com um par de cabras e martelos ao lado. O encontro de objetos líticos pré-históricos em sepulturas da Era Viking (possivelmente tomados como pedras de raio ou objetos associados ao culto de Thor) foram mencionados rapidamente, sem maiores aprofundamentos.

A opinião de que originalmente o mjollnir era um machado (nas interpretações de Turville-Petre, Motz e Davidson) é totalmente questionada por Taggart, assim como a idéia de que as pedras de raio não influenciaram a morfologia deste objeto na literatura medieval. A questão do envolvimento da suástica com o martelo e os mitos de Thor foi tratada superficialmente em uma nota (Taggart, 2015, p. 177-188), seguindo uma tradição de quase setenta anos sem estudos acadêmicos objetivos sobre esse símbolo, ao contrário do que ocorria no Oitocentos. Como em muitos casos, a política influencia o caminho acadêmico.

  Outro grande problema da pesquisa é que apesar do título e da proposta, existe muito pouca atenção aos aspectos rituais envolvendo o culto de Thor e as mitologias celestes, no qual os fenômenos atmosféricos do relâmpago e do trovão se inserem. Apesar de citar o livro de Maths Bertell (2003) a respeito de questões historiográficas envolvendo a deidade (notas 5, 47 e 59), não referencia o mesmo em sua principal questão, as cosmologias relacionadas às divindades européias do trovão (com destaque para Thor, evidentemente). Aliás, o tema da cosmologia vem ocupando grande atenção de arqueólogos e historiadores das religiões no mundo nórdico, como Eldar Heide, Clive Tooley, Catharina Raudvere, Anders Andrén, Lotte Hedeager, entre outros, quase todos omitidos da tese. A Astronomia aparece muito rapidamente quanto trata da identificação da constelação da Ursa Maior, seguindo a equivocada interpretação de Jacob Grimm (Taggart, 2015, p. 77). Seria muito mais proveitoso caso tivesse respaldado sua interpretação no recente trabalho de Thomas Dubois (2014, pp. 184-260), que recorre a uma análise comparativa entre a área nórdica e finlandesa e é uma das melhores reflexões sobre as crenças envolvendo constelações na Escandinávia da Era Viking.  

Para discutir questões climáticas, o autor emprega um pesquisador chamado Markús Einarsson e o panorama climatológico da Islândia moderna (Taggart, 2015, p. 203-204), mas o mais correto seria utilizar pesquisas paleoclimatológicas da Europa Setentrional durante a Alta Idade Média. Lembramos que Taggart criticou o uso de fontes folclóricas para se entender o estudo de mito medievais, mas não acaba fazendo o mesmo com o tema do clima? Afinal, como a sociedade, o clima de uma região em uma perspectiva diacrônica possui permanências e mudanças. Resta ao pesquisador o equilíbrio no momento da análise.

Apesar de seus pequenos problemas, a tese de Declan Taggart é um ótimo referencial para todos os interessados nos estudos nórdicos em geral e em especial, aos pós-graduandos que possuem temas relacionados com a religiosidade medieval. A sua estrutura, aplicação de análise, perspectiva analíticas e uma grande conclusão, dividida em oito tópicos e abrindo para inúmeras possibilidades futuras de investigação, é um excelente convite para leituras e interpretações acadêmicas.



Referências:

ÁNTON, Teodoro Manrique. La literatura nórdica antigua en la obra de Juan Andrés. Rilce 30, 2014, pp. 461-483. Disponível aqui. 

BERTELL, Maths. Tor och den nordiska åskan: Föreställningar kring världsaxen. Stockholm: Universitet Stockholms, 2003. Disponível aqui 

BLINKENBERG, Christian. The thunderweapon in religion and folklore: a study in comparative Archaeology. Cambridge: Cambridge University Press, 1911. Disponível aqui 

DAVIDSON, Hilda. Deuses e mitos do norte da Europa. São Paulo: Madras, 2004 (original de 1964).

DAVIDSON, Hilda. Thor’s Hammer. Folklore 76(1), 1965, pp. 1-15.

DUBOIS, Thomas. Underneath the self-same sky: comparative perspectives on sámi, finnish, and medieval Scandinavia astral lore. In: TANGHERLINI, T. (Ed.). Nordic Mythologies: interpretations, intersections, and Institutions. Berkeley: North Pinehurst Press, 2014, pp. 184-260.

JOHANSON, Kristiina. The changing meaning of thunderbolts. Folklore 42, 2005, pp. 129-174. Disponível aqui 

LANGER, Johnni. Thor. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, pp. 496-503.

LANGER, Johnni. Martelo de Thor. In: LANGER, Johnni (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica: símbolos, mitos e ritos. São Paulo: Hedra, 2015, pp. 301-304.

LINDBERG, Anette. The concept of religion in current studies of Scandinavia Pre-christian Religion. Temenos 45(1), 2009, pp. 85-119. Disponível aqui 

LINDOW, John. Thor´s hammarr. Journal of English and Germanic Philology 33(4), 1994, pp. 485-503.

MEES, Bernard. Work Songs and Whetstones: From Sutton Hoo to Straum. Scandinavian Studies 87, 2015, pp. 514-530.

MITCHELL, Stephen A. The whetstone as symbol of authority in Old English and Old Norse. Scandinavian Studies 57, 1985, pp. 1-31. Disponível aqui 

MOTZ, Lotte. The Germanic thunderweapon. Saga-Book 24(5), 1997, pp. 329-350. Disponível aqui 

PERKINS, Richard. Thor the Wind-Raiser and the Eyrarland Image. London: Viking Society for Northern Research, 2001. Disponível aqui 

SIMPSON, Jacqueline. The king´s whetstone. Antiquity 53, 1979, pp. 96-101.

STURLUSON, Snorri. Snorri Sturluson Edda: Skáldskaparmál. Edição em nórdico antigo por Anthony Faulkes (Baseado nos manuscritos Codex Wormianus, AM 242 fol, e Codex Regius, GKS 2367 4°). London: Viking Society for Northern Research, 1998. Disponível aqui 

TAGGART, Declan Ciaran. Understanding diversity in Old Norse religion taking Þórr as a case study. Tese de Doutorado em Língua inglesa, Universidade de Aberdeen, 2015. Disponível aqui 

WOOD, Chris. Air in a got skin: Is there a metalworker in Asgard? Quest 181, 2015, pp. 21-28. Disponível aqui