O grupo interinstitucional NEVE (NÚCLEO DE ESTUDOS VIKINGS E ESCANDINAVOS, criado em 2010) tem como principal objetivo o estudo e a divulgação da História e cultura da Escandinávia Medieval, em especial da Era Viking, por meio de reuniões, organização de eventos, publicações e divulgações em periódicos e internet. Parceiro internacional do Museet Ribes Vikinger (Dianamarca), Lofotr Viking Museum (Noruega), The Northern Women’s Art Collaborative (Universidade de Brown, EUA), Reception Research Group (Universidad de Alcalá) e no Brasil, da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais) e PPGCR-UFPB. Registrado no DGP-CNPQ. Contato: neveufpb@yahoo.com.br

domingo, 28 de maio de 2017

Como estudar a Mitologia Nórdica no Brasil: dicas, fontes e bibliografia




COMO ESTUDAR A MITOLOGIA NÓRDICA NO BRASIL: DICAS, FONTES E BIBLIOGRAFIA

Prof. Dr. Johnni Langer (UFPB/NEVE)

Com o sucesso de muitos filmes, romances, quadrinhos e música, a mitologia nórdica vem sendo constantemente foco de interesse no mundo moderno. Séries de tv como Vikings, filmes como Thor e a recente tradução do livro Mitologia Nórdica de Neil Gaiman reforçam ainda mais esse interesse popular. Mas afinal, como conhecer mais a fundo esse rico universo mítico? Quais os melhores livros e qual caminho tomar para o seu aprofundamento?




1. Primeiro passo: a leitura de manuais
A leitura direta das fontes primárias da Mitologia Nórdica não é uma tarefa fácil, então o primeiro passo que recomendo é a leitura de manuais introdutórios que possam fornecer uma visão sistêmica e geral do panteão, das divindades, das principais fontes, das narrativas. Em língua portuguesa já foram publicados duas obras da famosa mitóloga britânica Hilda Davidson que conseguem dar conta deste panorama introdutório de forma muito competente: Deuses e mitos do norte da Europa (Madras, 2004) e Escandinávia (Lisboa: Verbo, 1987), são de fácil leitura e fornecem os principais elementos analíticos para o interessado. Podem ser adquiridos em sebos e bibliotecas.


Eu não recomendo a leitura de qualquer coisa da escritora Mirella Faur. Além de suas obras não serem acadêmicas (são livros escritos de um ponto de vista místico e esotérico), contém muitos erros históricos, anacronismos, fantasias e visões preconceituosas. Para um conhecimento mais aprofundado destes equívocos, leia a seguinte resenha que publiquei em 2008: Runas e magia.
Para quem domina a leitura do espanhol, outra dica excelente é o maravilhoso livro de Enrique Bernardez (Los mitos germânicos), que recentemente recebeu uma nova edição. Ele é bem atualizado e descreve em detalhes todos os aspectos das diversas narrativas, suas versões e múltiplas características. Para os leitores de inglês, nenhum manual introdutório é mais recomendado que Myths of the pagan North, de Christopher Abram.


Não posso deixar de mencionar o Dicionário de Mitologia Nórdica (Hedra, 2015), a maior e melhor publicação sobre o tema em língua portuguesa, recomendado não somente para iniciantes como também para pesquisadores mais avançados. Ele possui referências sobre localidades, deuses, autores, fontes, símbolos, narrativas, etc. Para quem está no começo das pesquisas, sugiro primeiro ler os verbetes Mitologia Nórdica, Edda Poética, Edda em Prosa, Antropogonia, Cosmogonia, Cosmologia, Ragnarok, Snorri Sturluson, para em seguida ler os principais deuses: Odin, Thor, Freyja, Loki, Balder e depois seguir as remissões indicadas nestes verbetes.

2. As fontes
Aqui chegamos num ponto muito delicado. Não existem traduções acadêmicas das principais fontes da mitologia nórdica do nórdico antigo para o português, as duas Eddas. Se você é uma pessoa apenas interessada em conhecer os mitos e não necessariamente estudar eles de um ponto de vista acadêmico, então eu recomendo primeiro a leitura da Edda de Snorri (ou Edda Menor). Como ela foi escrita em prosa e unificada em uma visão linear e sistematizadora (e do ponto de vista de um cristão, por certo), facilita muito ao leitor moderno a sua compreensão. Na falta de uma tradução acadêmica no Brasil, eu recomendo a leitura da versão de Artur Avelar, disponível pela Amazon. Ela foi realizada com base em traduções ao inglês e é bem mais séria e organizada que a proposta por Marcelo Lima em 1997. Mas se você é graduando ou pesquisador acadêmico, não tem jeito, vai ter que apelar para uma tradução direta do nórdico antigo para uma língua moderna, seja ao espanhol – recomendo Edda Menor (Alianza, 2000, tradução de Luis Lerate), em inglês – The Prose Edda (Penguin, 2005, tradução de Jesse Byock); ao francês - L´Edda (Gallimard, 1991, tradução de François Xavier-Dillmann).

  


Com a Edda Poética (ou Maior) já temos alguns poemas éddicos traduzidos diretamente do nórdico antigo. Um deles, o Grímnismálestá disponível pela revista Roda da Fortuna. Outro, o Thrysmskvida, está disponível no Dicionário de Mitologia Nórdica (p. 510), bem como a Canção das lanças (p. 91). Mas se você quer a Edda Maior de maneira mais tradicional (com as edições dos poemas heroicos e mitológicos), terá que apelar novamente para as traduções estrangeiras: na tradução ao espanhol de Luis Lerate (Edda Mayor, alianza, 2016); ao inglês uma das mais acessíveis é a versão de Carolyne Larrington (The Poetic Edda, Oxford), e ao francês – L´Edda Poétique, traduzida por Régis Boyer (Fayard, 1992).

  


Outras importantes fontes primárias são os poemas éddicos incluídos nas sagas islandesas (denominados de Eddica Minora) e alguns poemas escáldicos com conteúdos míticos. Parte deste legado foi traduzido ao espanhol por Luis Lerate e encontra-se no livro Poesía antiguo-nordica: antologia siglos X-XII (Alianza Editorial, 1993).

 


Também as sagas lendárias contém material mitológico, especialmente as sagas lendárias. A mais famosa delas, a Saga dos Volsungos, recebeu uma bela edição da editora Hedra (2009), realizada pelo pesquisador Théo de Borba Moosburger. Sobre a questão do ciclo nibelungiano, do qual a Volsunga faz parte, existe um excelente documentário franco-alemão que está disponível no youtube (El cantar de los Nibelungos, dublado em espanhol):



Aliás, existem poucos materiais audiovisuais de credibilidade sobre mitologia nórdica. Outra dica envolvendo documentários é uma razoável produção norte-americana, Thor (série: Confronto dos deuses). Descontando algumas mancadas, como a maquiagem e figurino dos deuses nórdicos (horrível por sinal) e um ou outro erro, o documentário é recomendável, especialmente pela inclusão de diversas análises de acadêmicos.



Um excelente recurso avançado para o conhecimento geral das fontes da mitologia nórdica está disponível no projeto PCRN: Sources da Universidade de Abberden (manuscritos, narrativas, cultura material, toponímia, inscrições rúnicas, etc).
Outros materiais de referência obrigatórios para estudantes de qualquer nível são os capítulos Mythology and mythography, John Lindow; Eddic Poetry, Joseph Harris, incluídos no livro Old Norse-Icelandic Literature (Toronto Press, 2005) e Eddic Poetry, Terry Gunnell (da obra Old Norse-Icelandic Literature and Culture, Blackwell, 2007). Ambos fornecem uma visão historiográfica de cada poema éddico, bem como estudos sobre suas datações, interpretações, contexto codicológico e relação com a tradição oral e literária do medievo.
Para um vislumbre mais avançados das fontes primárias, ver o ensaio: Uma introdução às fontes da Mitologia Nórdica.

3. Obras analíticas avançadas
Não se pode desprezar a leituras dos clássicos, e neste sentido o conhecimento da obra de Georges Dumézil é primordial. Ele possui uma obra traduzida, Do mito ao romance (Martins Fontes, 1982), do qual podemos perceber sua vasta erudição e conhecimento das fontes escandinavas, apesar de sua perspectiva teórica ter ficado muito datada. Também em espanhol existem boas traduções de outros livros de sua autoria: Los dioses de los germanos (siglo xxi, 1990) e El destino del gerrero (siglo xxi, 2003).
Meus três livros autorais contém estudos de caso da mitologia nórdica (publicados entre 2009 e 2016) e são indicados para quem já tem alguma base na área e podem fornecer parâmetros para novas pesquisas: Deuses, monstros e heróis (UNB, 2009); Na trilha dos vikings (UFPB, 2015) e Fé Nórdica (UFPB, 2015). 

  


Também os artigos dos membros do NEVE podem auxiliar muito neste sentido (clique aqui).
Particularmente, destaco uma importante contribuição reflexiva sobre as Eddas e seus limites como fonte da mitologia nórdica, escrita pelo membro lusitano do NEVE, o historiador Hélio Pires: As Eddas não dizem tudo (Férula 10, 2015).
Mas não há como fugir das obras em inglês. Aliás, na medida em que for avançando nas pesquisas, o estudante perceberá que o domínio instrumental da língua inglesa é uma necessidade imprescindível para qualquer campo da Escandinavística e necessária para toda pesquisa em nível de pós-graduação. Com o tempo, o pesquisador também deve consultar o idioma original das fontes, com o intuito de perceber outros elementos em seu contexto para uma análise mais sofisticada.
Na língua inglesa existem dezenas de clássicos e obras primorosas para o estudo da mitologia nórdica e é quase impossível de realizar uma lista completa neste momento. Eu vou citar apenas algumas, de que tenho mais afinidade e que possuem perspectivas passíveis de aplicação em novas pesquisas. A coletânea The Poetic Edda: essays on Old Norse Mythology (Routledge, 2002) é uma verdadeira obra prima da academia, reunindo pesos pesados dos estudos mitológicos e com alguns clássicos, como o estudo da pesca da serpente do mundo (Preben Sørensen), o hidromel de Gunnlod por Katrina Attwood; a maldição em Skírnismál por Joseph Harris, entre muitos outros. Da já citada Hilda Davidson, aconselho um de seus melhores estudos: Myths and symbols in Pagan Europe (Syracuse Press, 1988), no qual realiza uma comparação vigorosa entre os mitos celtas e nórdicos. Para finalizar, um dos mais emblemáticos e mesmo paradigmáticos estudos contemporâneos, The origins of drama in Scandinavia, de Terry Gunnell (colaborador estrangeiro do NEVE). Nesta obra, o autor recupera a discussão das origens orais dos mitos e suas implicações folclóricas, além do teor de dramatização e performance das narrativas.

4. A escolha de temas para pesquisa
Não é fácil escolher um bom tema para pesquisa, mas isso não significa que é impossível. Para o iniciante nos estudos nórdicos, pode parecer muito complicado eleger um assunto que seja original, uma abordagem inédita ou uma problemática que poucos tenham analisado, mas com a experiência, as leituras e o avanço nas pesquisas, o estudante vai perceber que existem ainda muitas possibilidades de investigação.
Uma sugestão é na medida em que for lendo as Eddas, escolhendo algum método de análise e lendo as bibliografias secundárias, entre em contato com os escandinavistas do NEVE e troque informações ou solicite auxílio nesta ocasião. O intercâmbio em muitos casos pode auxiliar muito a escolha de temas e abordagens, especialmente dentro da academia brasileira e suas diversas possibilidades, especialmente na História, Letras e Ciências das Religiões. O melhor é se cadastrar no grupo do NEVE no facebook e compartilhar suas dúvidas, ansiedades e opiniões. Aguardamos o seu contato! Também grande parte dos livros indicados neste ensaio estão disponíveis em formato pdf na seção arquivos do grupo NEVE no facebook, aproveite e se cadastre.



5. Os métodos de pesquisa
Quase tão importante quanto escolher uma fonte, um recorte espaço temporal e uma perspectiva teórica, é definir um método de pesquisa. Geralmente os estudantes brasileiros de mitologia acabam convergindo para algum autor da fenomenologia, visto que é a vertente mais traduzida até hoje em língua portuguesa. Mas existem outras opções, mais modernas e coerentes.
Para começar, é necessário ler um pouco sobre teoria do mito. O manual Introdução à mitologia (Paulus, 2014), de José de Almeida Júnior, é um bom começo. O seu problema é que aborda exclusivamente autores fenomenológicos (Eliade, Jung, Campbell, etc). Uma leitura ainda melhor é o livro de Victor Jabouille: Iniciação à Ciência dos Mitos (Lisboa: Inquérito, 1986), possível de ser encontrado em sebos virtuais ou em grandes bibliotecas. Nesta obra, o autor trata das diversas teorias dos mitos, do funcionalismo até o estruturalismo e a história italiana das religiões. Uma leitura ainda mais avançada, mas nem por isso menos acessível aos graduandos, é o livro: A invenção da mitologia, de Marcel Detienne (Edunb, 1992), que pertence à perspectiva da Escola de Paris, preponderando a perspectiva histórico social dos mitos. Sempre é aconselhável ao pesquisador tem uma noção historiográfica do seu campo de atuação e neste sentido o capítulo The interpreters (The lost beliefs of Northern Europe, 2001) de Hilda Davidson é exemplar, conferindo uma visão diacrônica das diversas interpretações acadêmicas sobre os mitos escandinavos.
Com relação à metodologia de análise, o estudante pode utilizar a proposta do historiador Ciro Flamarion Cardoso em seu livro Narrativa, sentido, História (Papirus, 2005), baseada na análise histórico-literária do formalismo russo. Além de fornecer o modelo teórico, Cardoso também exemplifica na prática, analisando detalhadamente uma narrativa nórdica medieval, o conto de Helgi Thorisson (pp. 67-83). Seguindo essa perspectiva, em 2006 eu realizei uma proposta de análise do poema éddico Thrymskvida (Mythica Scandia, pp. 54-60).

  


Outra possibilidade muito interessante de se analisar os mitos nórdicos é através do imaginário social de perspectiva francesa. Recomendo a leitura dos dois capítulos da seção Mito e Método (Os três dedos de Adão: ensaios de mitologia medieval, Edusp, 2010) do medievalista Hilário Franco Júnior. Grande parte dos meus estudos dos anos 2000 foi nesta perspectiva analítica.
Existem diversas outras perspectivas metodológicas, mas finalizamos apenas com mais uma, a iconográfica e da cultura material dos mitos nórdicos. O pesquisador Signe Horn Fuglesang possui um estudo paradigmático neste referencial: Iconographic Traditions and Models in Scandinavian Imagery (International Saga Conference, 2006). Também o livro Iron Age myth and materiality: an Archaeology of Scandinavia AD 400-100, de Lotte Hedeager (Routledge, 2011) é um excelente exemplo de análise material dos mitos. Uma metodologia e ao mesmo tempo perspectiva teórica que vem sendo muito aplicada pelos arqueólogos dinamarqueses é a da cosmologia. Uma leitura instrumental desta vertente analítica é o estudo The part of the whole: cosmology as anempirical and analytical concept, de Catharina Raudvere (Temenos 45(1), 2009).
A última dica: mantenha acima de tudo a perseverança. A Escandinavística no Brasil ainda é um campo não consolidado e muitos professores universitários ainda percebem com desconfiança qualquer interesse no estudo dos mitos nórdicos. Pesquise o que goste, mas também seja ponderado e não abandone suas metas. No fim, o resultado pode ser alcançado.




6. Pós-graduação:

Não existem cursos de pós graduação com foco ou ênfase objetiva nos estudos de mitologia nórdica, ao menos no Brasil. A possibilidade é ingressar em algum mestrado ou doutorado acadêmico em áreas genéricas como História ou Letras e ter o projeto de pesquisa voltado para o estudo de alguma narrativa mítica da área escandinava. A maior dificuldade é encontrar algum professor cadastrado em programa que tenha interesse em orientar esse tema, visto que grande parte dos medievalistas preferem outros interesses. Mas a melhor opção atualmente em nosso país são os programas de pós graduação em ciência da religião, com cursos em São Paulo (PUC-SP), Minas Gerais (UFJF) e várias cidades e capitais do país. O curso com mais pesquisas defendidas e em andamento sobre mitologia nórdica é o PPGCR da Universidade Federal da Paraiba.
Referências: